VADÍM ROGÓVIN, EDITORA SUNDERMANN, 2023

Por: André Luis Amorim de Oliveira. https://orcid.org/OOOO-0002-9792-5768

“Havia alternativa ao stalinismo?” — de Vadim Zakharovich Rogóvin (19371998) — constitui uma das contribuições historiográficas mais relevantes para a compreensão do stalinismo e das formas de resistência por ele suscitadas, em especial aquelas empreendidas pela Oposição de Esquerda.

Rogóvin, historiador e sociólogo marxista nascido em 1937 na URSS e ainda pouco conhecido no Brasil, destaca-se pelo rigor e pela profundidade de suas investigações históricas sobre o tema. Dos sete volumes que compõem sua obra principal, a leitura do Tomo I — objeto desta resenha — já atesta a consistência e a relevância de seu trabalho, que, segundo outro importante historiador, Jean-Jacques Marie, constitui uma “fonte de conhecimento e reflexão incomparável” (Marie, 2023, p.18).

Publicado originalmente em russo em 1992, o primeiro tomo da obra chegou ao público brasileiro somente em 2023, por meio da Editora Sundermann. Com tradução direta do russo realizada por Diego de Sturdze, o Tomo I I é composto por 46 capítulos que abordam temas centrais para a compreensão do surgimento, consolidação e declínio do stalinismo, bem como do papel desempenhado pela Oposição de Esquerda no enfrentamento à burocratização do Estado soviético.

De forma sintética, o livro inicia-se com o tema do “nascimento do partido único” (capítulo 1), passando por outros, como: “Os privilégios” (capítulo 2), o conteúdo político do “testamento” de Lenin (capítulo 7), o processo de repressão e concentração monopólica do poder (capítulo 13), o surgimento do mito do “trotskismo” (capítulo 28), a conformação da “Oposição Unificada” (capítulo 35), os “métodos de luta contra a oposição” (capítulo 37), o “socialismo num só país” (capítulo 38), a “aposta na revolução mundial” (capítulo 40), até a conclusão em “O fim da oposição” (capítulo 46). Além do corpo principal do texto, a edição conta com notas dos editores, informações sobre o autor, lista de siglas, acrônimos e organizações, glossário, datas de congressos e conferências, notas bibliográficas e um sumário da coleção com informações sobre os demais tomos.

O primeiro volume da série apresenta uma análise rigorosa dos processos históricos que resultaram na progressiva burocratização do Partido Comunista, na consolidação do stalinismo como forma degenerada de poder e na constituição de um aparato repressivo institucionalizado. A violência, nesse contexto, deixou de ser um recurso contingente para tornar-se elemento estruturante do regime, direcionado inicialmente contra a Oposição de Esquerda — principal expressão organizada da luta revolucionária — e posteriormente estendido a amplos setores da sociedade soviética.

Rogóvin examina esse período crucial que vai dos primeiros anos pósRevolução de Outubro até o emblemático “Congresso da Coletivização” (1927) marco que, segundo o autor, representou o “fim” da Oposição enquanto organização

formal.

O Tomo I parte da constatação de que a consolidação da burocracia e o surgimento do stalinismo não foram processos inevitáveis, mas o resultado de uma luta política concreta e profundamente desigual, travada no interior do Partido Comunista da União Soviética, mas que havia uma alternativa a esse processo.

Rogóvin explica que o objetivo do livro é “restituir ao leitor as dramáticas páginas da primeira década pós-Outubro, para mostrar que o stalinismo não era a continuação, mas a negação de toda a causa do bolchevismo” (Rogóvin, 2023, p. 538). Uma negação “que abriu caminho através da luta contra um massivo movimento dentro do partido que apresentava uma alternativa socialista de fato para o desenvolvimento da sociedade soviética” (Ibid., p. 538).

Uma das teses centrais desenvolvidas por Rogóvin em Havia alternativa… consiste na afirmação de que a Oposição de Esquerda representava uma alternativa histórica real e concreta ao curso tomado pela burocracia stalinista. Essa alternativa assentava-se em pilares programáticos sólidos, como a defesa da democracia soviética, o compromisso com o internacionalismo revolucionário e a restauração do poder político e econômico dos sovietes — ou seja, do controle direto dos trabalhadores sobre os rumos da sociedade. Nesse sentido, a Oposição de Esquerda expressava uma continuidade viva com os ideais da Revolução de Outubro, contrapondo-se à degeneração burocrática que progressivamente esvaziou os mecanismos de participação popular e instituiu um regime de terror centrado na violência e na repressão.

Nesse sentido, o autor destaca que a Oposição de Esquerda, liderada por Leon Trotsky (1879-1940) e composta por importantes quadros do partido, surge como expressão de resistência à crescente burocratização do Estado soviético, à eliminação do centralismo democrático nos sovietes e ao abandono da estratégia revolucionária internacional — substituída por uma política sustentada na tese do “socialismo em um só país”, segundo a qual uma revolução socialista poderia não apenas triunfar, mas também se manter e desenvolver de forma isolada, mesmo em um contexto internacional dominado pelas relações capitalistas.

O autor dedica especial atenção ao papel desempenhado pelas massas nesse processo, evidenciando que houve significativa simpatia e apoio à Oposição, mesmo diante do monopólio da informação e da repressão. Documentos internos, livros, artigos, relatos, cartas, manifestações diversas, dados sobre o contingente de opositores e outras informações são utilizadas para demonstrar que a alternativa ao stalinismo não era somente teórica, mas possuía base social e política significativa, apesar da repressão.

Assim, ao contrário da imagem propagada pela historiografia oficial soviética e, posteriormente, russa, bem como pelas versões ideológicas liberais, para Rogóvin a Oposição não representava um grupo marginal e sem força política, mas reunia setores significativos da militância comunista especialmente entre jovens, trabalhadores urbanos, industriais, camponeses, intelectuais e membros do Exército Vermelho.

Essa base de apoio à Oposição foi duramente combatida pelo stalinismo por meio de um conjunto articulado de repressão política, violência estatal, manipulação ideológica e isolamento organizativo. Tais métodos refletiam o temor profundo da burocracia stalinista diante de uma alternativa política que ameaçasse seu monopólio de poder, ao mesmo tempo em que visavam criar mecanismos para contornar a instabilidade interna da burocracia.

Com o avanço da burocratização e o fortalecimento do stalinismo após a Revolução de Outubro, a repressão contra a Oposição de Esquerda intensificou-se significativamente a partir de 1925. Sob a liderança da cúpula stalinista, instaurou-se uma política sistemática de violência política que incluiu censura, perseguições, expulsões do partido, prisões arbitrárias, deportações, julgamentos simulados, torturas e execuções em massa. A esses métodos somaram-se práticas de difamação, fabricação de acusações e uma ampla campanha de falsificação histórica voltada à aniquilação simbólica dos opositores.

Tal processo culminou na exclusão da Oposição de Esquerda do Partido no XV Congresso do Partido Comunista da União Soviética (PCUS), em 1927, extinguindo-se, na prática, qualquer possibilidade de pensamento livre e independente na organização. A expulsão formal da Oposição representou o fechamento definitivo das instâncias de discussão no interior do partido, bem como o afastamento daqueles quadros políticos capazes de resistir aos ziguezagues irresponsáveis e às improvisações voluntaristas de Stálin e de sua base de apoio burocrática (Ibid., p. 535).

A supressão da Oposição de Esquerda e a anulação do debate político dentro do partido criaram as condições para que uma camada burocrática privilegiada se instalasse de forma hegemônica, rompendo com os princípios do centralismo democrático. Essa situação permitiu que a burocracia stalinista atuasse de forma cada vez mais autoritária e arbitrária. Poucos anos após a expulsão dos últimos membros do Politburo da era leninista, o aparato dirigente do partido alcançou plena homogeneidade política (Ibid., p. 550).

Contudo, mesmo diante da repressão crescente, núcleos de resistência persistiram, mantendo vivas — ainda que em condições extremamente adversas — as ideias e práticas revolucionárias contrárias ao stalinismo, especialmente por meio da militância clandestina, de discussões teóricas em prisões e da atuação de oposicionistas no exílio.

O contexto histórico que envolve a primeira edição da obra de Rogóvin na Rússia (1992) coincide com o momento crítico da dissolução da URSS, período em que as bases do regime soviético desmoronavam e a memória da Revolução de Outubro tornou-se objeto de disputa entre diferentes interpretações históricas. O fim da URSS, em 26 de dezembro de 1991, como observa Marie (Ibid., p. 19), foi um evento histórico complexo, que marcou a desintegração do regime soviético e o colapso de seu sistema político e econômico. Tal processo provocou transformações profundas em todos os âmbitos da sociedade soviética, reconfigurando significativamente as esferas política, social e econômica do país.

A restauração do capitalismo na Rússia, em 1991, desencadeou um realinhamento profundo de valores, discursos e práticas, promovendo uma reconfiguração ideológica que ultrapassou a esfera estatal e atingiu setores como a mídia, a produção intelectual e a pesquisa acadêmica.

Não por acaso, muitos dos antigos defensores da burocracia soviética — que por décadas haviam legitimado o regime stalinista em nome do “socialismo soviético”  rapidamente se reinventaram como defensores da democracia liberal e da economia de mercado, assumindo posições de destaque na promoção da agenda neoliberal.

Impulsionado por setores hegemônicos da nova classe dirigente, o discurso dominante passou a reescrever a história soviética, em especial o período da Revolução de Outubro, de forma unilateral e condenatória. Esses setores desempenharam um papel central no revisionismo histórico, simplificando processos complexos e distorcendo o papel de figuras-chave daquele período.

O sentido dessas reinterpretações era, por um lado, reescrever a história da Revolução de 1917, apresentando-a como um suposto “golpe” de Estado promovido pelos bolcheviques, responsabilizados diretamente pela gênese do stalinismo. Simultaneamente, desenvolveu-se uma retórica que buscava apagar as distinções entre stalinistas e seus críticos, igualando a resistência — sobretudo a da Oposição de Esquerda — às práticas que ela própria combatia. Tal construção retórica operava no sentido de deslegitimar o papel de toda a crítica interna e revolucionária ao processo de burocratização e ao stalinismo e, ao mesmo tempo, obscurecer as distinções entre os defensores dos princípios socialistas originais e a burocracia stalinista.

Nesse cenário de acirrada controvérsia sobre o legado histórico do socialismo soviético, a produção teórica de Rogóvin adquiriu particular relevância. Tratava-se de uma intervenção teórica urgente, realizada “a quente”, em meio a um processo de reavaliação histórica da URSS — não apenas por forças anticomunistas, mas também por aqueles que ainda mantinham o compromisso de restabelecer a verdade histórica sobre o papel e as possibilidades concretas de uma alternativa revolucionária ao processo de burocratização na URSS. É nesse sentido que Rogóvin busca, em sua obra, reconstruir criticamente os eventos históricos daquele período.

Para tanto, o autor fundamentou sua análise em um amplo e diversificado conjunto de fontes primárias e secundárias. Sua pesquisa mobilizou desde documentos oficiais até então inacessíveis, memórias de sobreviventes dos expurgos, estudos acadêmicos, correspondências pessoais, artigos de imprensa e panfletos políticos, até obras literárias da época — compondo, assim, um acervo documental consistente e variado.

Contudo, mais do que o acesso aos arquivos soviéticos parcialmente liberados durante a abertura promovida pela Glasnost nos anos 1980, foi sobretudo o rigoroso trabalho de pesquisa desenvolvido por Rogóvin — aliado à sua perspicácia como historiador e sociólogo, bem como ao seu comprometimento com a memória dos revolucionários — que possibilitou a elaboração de uma obra de fôlego e densidade crítica.

Em “Havia alternativa…”, Rogóvin dedica-se, entre outros aspectos, a uma crítica incisiva e fundamentada da identificação reducionista entre leninismo e stalinismo. Ao reconstruir o surgimento da Oposição de Esquerda e seu papel no enfrentamento à burocratização do Estado soviético e à consolidação do stalinismo, o autor evidencia a ruptura entre esses dois projetos históricos e políticos, refutando de maneira consistente a tese de uma suposta continuidade entre eles. Para o autor, o stalinismo representou uma negação dos princípios e práticas da Revolução de Outubro — especialmente no que tange à democracia operária, ao internacionalismo proletário, à luta contra a concentração de poder e privilégios entre os burocratas e aos rumos possíveis para o socialismo. Rogóvin avança no sentido de uma análise histórica e materialista que distingue cuidadosamente os processos contraditórios que levaram à consolidação da burocracia stalinista, reconhecendo que o “país dos sovietes” já enfrentava sérios problemas de burocratização no período pós-Guerra Civil, em 1921. Dessa forma, sua análise evita tanto a idealização do período leninista quanto a naturalização da burocracia stalinista, revelando a complexidade dialética desse processo histórico.

Nesse sentido, para Rogóvin, o processo de contrarrevolução burocrática stalinista não foi nada abrupto, inevitável ou uma mera continuidade direta do leninismo. Ao contrário, tratou-se de um processo desigual e contraditório, marcado por condições materiais específicas, decisões políticas, disputas internas e inflexões históricas que, ao longo da década de 1920, pavimentaram o caminho para a consolidação do regime stalinista. Todavia, essa ascensão de um novo bloco de poder na URSS tampouco ocorreu sem resistência ou conflito entre distintas posições políticas.

Rogóvin enfatiza a dimensão política e o papel ativo das lutas internas ao demonstrar como, naquelas condições históricas específicas, o chamado “Termidor soviético” não foi um mero desfecho inevitável, mas sim o resultado do processo de cristalização de uma nova camada dirigente. Essa burocracia, formada por profissionais do aparato estatal e partidário, consolidou-se progressivamente como camada burocrática privilegiada que, uma vez instalada nas estruturas de poder, passou a defender seus interesses materiais e privilégios institucionais, distanciandose crescentemente das bases revolucionárias originais.

Essa nova camada burocrática, embora reivindicasse em sua retórica o legado do socialismo, apoiava-se num discurso ideológico como instrumento de legitimação diante das massas, ocultando, na prática, a profunda contradição entre seus interesses materiais e os princípios igualitários da revolução. Assim, essa camada dirigente “procurava perpetuar sua existência, consolidar e justificar tanto o monopólio do poder quanto os seus crescentes privilégios” (Ibid., p. 548). Tal projeto de autoconservação encontrou sua expressão ideológica e política na sistemática luta contra a igualdade social real, pois era imprescindível um direcionamento político e econômico capaz de preservar os privilégios e, portanto, a desigualdade.

Contudo, como ressalta Rogóvin, o processo de burocratização e, com ele, a ascensão do stalinismo, não foi somente uma resposta pragmática à crise, mas uma transformação nos rumos da Revolução de 1917 que, tragicamente, implicou, por um lado, uma intensificação quantitativa da violência — com o aumento expressivo do número de prisões, execuções e deportações de milhares de revolucionários, sobretudo da velha guarda bolchevique — e, por outro, uma mudança qualitativa no conteúdo e objetivos dessa violência, direcionada de todas as formas para tentar manter o regime stalinista.

Além disso, a sustentação do regime só encontrou seu principal veículo na figura do “Pai dos povos” porque: “Determinadas forças sociais, arautos da gigantesca reação burocrática à Revolução de Outubro, venceram a luta interna no partido” (Ibid. p. 543). Tal vitória só foi possível mediante um conjunto de medidas que incluíam o extermínio de milhares de revolucionários e de outros tantos sujeitos sociais que se opunham ao regime dentro e fora da URSS.

Como o regime não se baseava em uma burocracia estável, pela própria natureza contraditória do processo, a necessidade de alterar o sentido da violência e da repressão foi alçada, por meio da figura de Stálin, a método político do novo Estado soviético. Assim, a violência foi institucionalizada, deixando de ser um recurso excepcional para se tornar o principal método de governo.

À medida que a burocracia se consolidava como uma camada dirigente acima da sociedade e do próprio partido, Stálin, por sua vez, se erguia acima dessa burocracia, assumindo progressivamente o papel de liderança absoluta que ela mesma necessitava para garantir sua continuidade (Ibid., p. 543). O frágil equilíbrio entre a busca de estabilidade burocrática e as constantes mudanças nos quadros dirigentes habilmente manipuladas por Stálin nos bastidores do poder — exigia a eliminação sistemática de qualquer alternativa política organizada. Diante disso, a liquidação da Oposição de Esquerda não foi um mero episódio da luta de Stálin e seus discípulos contra um grupo de “aventureiros contrarrevolucionários” a quem falsamente era atribuída a intenção de conquistar o poder e o controle do Estado soviético com vistas a restaurar o capitalismo, mas um passo estratégico indispensável à afirmação da burocracia stalinista e à perpetuação de seu domínio sobre o aparato estatal.

Como demonstra Rogóvin, a ameaça representada pela Oposição transcendia a crítica pontual: seu programa oferecia uma alternativa concreta à burocratização, propondo a revitalização dos sovietes, a retomada do internacionalismo proletário e a restauração dos princípios democráticos da Revolução de 1917 — elementos incompatíveis com a perpetuação do regime stalinista.

Justamente porque o stalinismo não surgiu organicamente do solo fértil da revolução socialista nem da tradição política e moral do bolchevismo, mas de sua negação, foi necessário que ele se impusesse por meio de uma luta violenta contra as forças internas do partido que ainda defendiam esses princípios. O avanço do stalinismo implicou, portanto, a destruição sistemática das bases políticas, ideológicas e éticas do movimento revolucionário original, conduzida pelo aparato burocrático sob a liderança de Stálin.

Assim, a violência e a repressão passaram a ter um caráter sistemático e preventivo, visando à manutenção do sistema burocrático, que era reorganizado em função da preservação do próprio stalinismo. O processo em curso não correspondia, portanto, a uma reação de autodefesa da revolução, mas a uma ação deliberada, orientada à manutenção dos privilégios dos burocratas e, consequentemente, do aprofundamento das desigualdades.

Tudo isso era acompanhado da supressão sistemática de qualquer alternativa política, inclusive — e de maneira contraditória — das correntes enraizadas na tradição revolucionária bolchevique. O terror passou a ser um método de controle levado às últimas consequências.

Dessa forma, a mera existência da Oposição de Esquerda como movimento de massas — com base material nas fábricas e legitimidade simbólica nos princípios de Outubro — configurava uma ameaça existencial ao projeto stalinista. Não por acaso, seu aniquilamento total — físico, político e cultural — tornou-se um imperativo categórico do regime. A caça implacável não só aos seus membros, mas a qualquer vestígio de sua influência, revelava o terror como um novo traço distinto do stalinismo.

Não por acaso, tal processo foi acompanhado da construção do mito do “trotskismo”, identificado também como “antileninismo”, “antipartidarismo” e “anticomunismo”. A construção desse mito pelo stalinismo teve como principais objetivos: justificar a repressão política interna, suprimir a alternativa marxista ao stalinismo, estigmatizar qualquer forma de dissenso, consolidar a autoridade de Stálin, além de desqualificar e isolar a Oposição de Esquerda no plano internacional.

Transformado em rótulo pejorativo, o “trotskismo” passou a designar qualquer crítica ao regime, mesmo quando enraizada na tradição revolucionária, funcionando como instrumento ideológico de perseguição e controle. Essa operação foi acompanhada por uma sistemática falsificação histórica, sustentada por discursos oficiais, campanhas de difamação e expurgos. O mito teve longo alcance político, uma vez que, desde então, “qualquer membro do PCR(b), assim como qualquer outra seção da Internacional Comunista, que concordasse com as posições de Trotsky sobre qualquer questão concreta, estaria condenado à acusação de ‘trotskismo”‘ (Ibid., p. 328-329) e, portanto, era tratado como “inimigo do povo” soviético.

À medida que as circunstâncias políticas mudavam, o aparato burocrático reciclava as acusações: os opositores, antes denunciados como “trotskistas”, eram rebatizados como “agentes imperialistas”, “sabotadores” ou até “cúmplices do nazismo”, num processo cínico de adaptação discursiva a serviço da perpetuação do poder de Stálin e do stalinismo.

A Oposição de Esquerda e o chamado “trotskismo” foram identificados e tratados como os principais inimigos a serem eliminados, justamente por expressarem os anseios de uma parcela significativa da população soviética quanto aos rumos da Revolução. Essa afinidade correspondia ao fato de que a Oposição de Esquerda, embora não fosse o único núcleo oposicionista ao stalinismo, era o mais bem estruturado e politicamente coerente entre as correntes à esquerda de Stálin. Sua força residia no enraizamento na tradição revolucionária que, junto ao proletariado, alcançou a revolução, assim como na significativa ressonância que mantinha entre setores do proletariado e da juventude soviética.

A pretensão stalinista era eliminar toda possibilidade de alternativa política ao processo de burocratização. Como assinalou Trotsky em seu livro A Revolução Traída, a burocracia não poderia conviver com uma crítica interna organizada, pois sua sobrevivência se apoiava na censura e no terror, sobretudo em relação à velha geração de bolcheviques. Paralelamente, para o stalinismo, era fundamental que os métodos violentos e repressivos desarticulassem qualquer tentativa de resistência ou contestação entre as gerações mais jovens, que poderiam desafiar a burocracia stalinista.

Simultaneamente, buscava-se inculcar nas novas gerações a ideia de uma continuidade direta entre Lênin e Stálin, especialmente por meio da valorização das conquistas alcançadas pelos trabalhadores e trabalhadoras no período de 1917 a 1924. Assim, paralelamente ao processo sistemático de extermínio dos revolucionários — cujo alvo principal foi a Oposição de Esquerda o stalinismo buscou ainda erradicar a memória histórica desses revolucionários, com objetivos políticos bem definidos.

Na verdade, a reescrita da história pelos stalinistas envolveu uma luta encarniçada em torno da memória dos revolucionários e oposicionistas. Para tanto, Stálin e os stalinistas recorreram às “falsificações históricas, fundadas em deturpações e interpretações tendenciosas de determinados fatos históricos e na ocultação de outros” (Ibid., p. 28). Tal processo só foi possível mediante a construção contínua de “amálgamas” usados para ludibriar o povo soviético. Como observa Rogóvin (p. 29): “Esse método foi a principal arma usada para enganar o povo soviético e os círculos progressistas estrangeiros, visando conquistar sua credulidade em relação às terríveis ações repressivas contra os chamados “inimigos do povo”.

No regime stalinista, o “amálgama” foi elevado a método sistemático de governo. Dissidentes, opositores internos, ex-bolcheviques, intelectuais críticos ou quaisquer figuras que representassem uma alternativa política eram agrupadas sob acusações genéricas e infundadas. Essa fusão deliberadamente distorcida permitia que o regime justificasse expurgos, prisões e execuções, apresentando a Oposição como uma espécie de “conspiração contrarrevolucionária”.

Ao abordar essa questão, Rogóvin evidencia a dimensão simbólica da violência política stalinista, expressa tanto na sistemática falsificação da história quanto na tentativa de apagar a memória dos revolucionários mediante a disseminação de falsificações em jornais, panfletos, revistas, livros, etc. “O coroamento das falsificações foram os amálgamas, isto é, a identificação da oposição comunista com os inimigos do povo” (Ibid., p. 518).

Tratava-se, em última instância, de uma ampla operação de falsificação histórica que tinha por objetivo não apenas difamar os chamados inimigos da revolução e do socialismo perante as massas, mas também justificar sua eliminação física frequentemente acompanhada por campanhas de destruição moral e psicológica contra eles e seus familiares. Ao mesmo tempo, essa estratégia abria espaço para um revisionismo sistemático da história da Revolução de 1917, desfigurada e reconfigurada conforme às mudanças que procuravam manter a burocracia stalinista.

Ao mesmo tempo, a narrativa oficial buscava apagar os antagonismos internos do Partido Bolchevique e a relevância histórica da Oposição de Esquerda, ao passo em que conferia à doutrina codificada sob o rótulo de “marxismo-leninismo” um caráter dogmático e exclusivo, apresentando-a como a única herdeira legítima do marxismo.

Enquanto destruía a Oposição e parte da população soviética, o stalinismo construía sua própria versão da história, projetando uma imagem externa positiva como bastião do anti-imperialismo e defensor da autodeterminação dos povos, atraindo assim o apoio de intelectuais, artistas, políticos, organizações, movimentos e partidos de esquerda, incluindo aqueles em países colonizados na “periferia” do mundo. Tal narrativa era reforçada por partidos comunistas estrangeiros, muitos deles seguindo a linha oficial do partido soviético, ao passo em que colocavam em prática os métodos políticos de terror stalinista. Essa reprodução do stalinismo em outros contextos, adaptada às particularidades de cada região onde surgiram possibilidades revolucionárias, determinou significativamente os rumos e os fracassos da maioria daquelas experiências. Ao mesmo tempo, os desdobramentos globais do stalinismo impactaram profundamente a organização e a história do movimento comunista mundial, ao ponto de seu espectro pairar ainda hoje sobre o mundo.

Havia alternativa… ajuda a entender o processo complexo de burocratização, o stalinismo e o papel da Oposição de Esquerda como via alternativa ao trágico rumo que a Revolução de Outubro seguiu. Em razão de sua densidade teórico-política e da envergadura intelectual de Rogóvin, o livro representa um marco no campo da historiografia crítica sobre um tema que permanece atual.

Contudo, para finalizarmos, cabe um apontamento crítico sobre o conteúdo deste Tomo l.

Para ficarmos num dos problemas da obra, talvez o mais significativo, apontamos a ausência de um tratamento histórico adequado sobre o papel central das mulheres revolucionárias na resistência ao processo de burocratização e ao stalinismo.

Embora o autor mencione, por exemplo, a atuação de figuras como Nadezhda Konstantinovna Krupskaya (1869-1939), sua análise demonstra-se pouco sensível — para não dizer limitada e superficial ao significado histórico e político da participação feminina, especialmente no que se refere às formas de resistência empreendidas por elas contra as políticas implementadas por Stálin. Tais políticas representaram uma inflexão significativa em relação às conquistas obtidas pelas mulheres nos primeiros anos da Revolução Russa, resultando em diversos retrocessos nos direitos e na condição social feminina na URSS.

Ademais, tal omissão é particularmente problemática na medida em que as mulheres, sob o stalinismo, enfrentaram uma condição de opressão dupla — como militantes políticas e como sujeitos de gênero — o que exigiu formas específicas e muitas vezes invisibilizadas de resistência. Assim, as formas de resistência e luta antistalinista conduzidas pelas mulheres constituem um ponto crucial para qualquer tentativa de reconstituição histórica crítica do período.

Vale lembrar que, na oposição política organizada, destacaram-se mulheres como Alexandra Kollontai — única integrante feminina do Comitê Central em 1917 e próxima da Oposição Operária por um período pioneira na denúncia da burocratização na URSS. Também merecem destaque as trotskistas Tatiana Smilga e Evgenia Bosch, que mantiveram redes clandestinas de resistência mesmo após a deportação de seus companheiros, além de outras militantes como Olga Ravich, Elizaveta Yakovlevna Drabkina e ZIata Ionovna Lilina. Não se pode esquecer ainda das chamadas “zinovievistas”, como Elena Stasova e Klavdia Nikolaeva, que foram críticas contundentes da degeneração partidária.

Assim, diversas mulheres revolucionárias militantes, intelectuais, sobreviventes dos expurgos, mães, companheiras de militantes — desempenharam papéis significativos na crítica à burocratização do Estado soviético, tanto nos espaços centrais de decisão quanto nas bases da militância. Por isso mesmo, a trajetória das mulheres que sobreviveram ao stalinismo foi marcada por silenciamentos, repressão, ameaças e pelo apagamento histórico.

Ainda que se possa alegar que o tratamento superficial do papel das mulheres na obra de Rogóvin decorra das dificuldades impostas pelas distorções e apagamentos sistemáticos promovidos pelo regime stalinista — ou mesmo das limitações no acesso às fontes documentais disponíveis — tal justificativa revela-se insuficiente diante da própria proposta do autor de reconstituir criticamente o conteúdo revolucionário suprimido pela burocracia.

Ao que parece, essa ausência das mulheres na obra de Rogóvin evidencia não somente uma limitação do trabalho desse autor, mas um problema recorrente na historiografia sobre o tema, inclusive na tradição marxista — que tende a concentrarse nas figuras masculinas da resistência, relegando a segundo plano tanto as mulheres que integraram formalmente a oposição ao stalinismo quanto aquelas cuja ação política se manifestou em formas cotidianas e menos visibilizadas de resistência ao terror.

Considerando a envergadura da obra de Rogóvin e sua declarada intenção de reconstruir a história da oposição ao stalinismo, seria esperado que o autor incluísse, de modo mais detalhado, a memória histórica das mulheres que participaram ativamente da luta contra a burocratização e o stalinismo, pois mais do que uma “reparação simbólica” ou uma questão de “justiça histórica”, tal inclusão das mulheres constitui um procedimento teórico e político essencial para uma compreensão plena das múltiplas determinações envolvendo as formas de oposição que se desenvolveram nos mais diversos espaços — teóricos, políticos, organizativos e cotidianos — no processo de burocratização na URSS.

Assim, embora não invalide a relevância de sua análise histórica e crítica sobre o processo de burocratização — particularmente no que concerne ao papel da Oposição de Esquerda a ausência de uma abordagem mais aprofundada da questão das mulheres na obra de Rogóvin acaba por reproduzir, ainda que de forma não intencional, determinada limitação analítica.

Se essa lacuna não chega a comprometer o esforço do autor em reconstituir, de forma abrangente e crítica, as dimensões do projeto revolucionário sufocado pelo avanço burocrático stalinista, trata-se certamente de uma limitação que merece crítica em sua obra — especialmente por se tratar de um trabalho que visa analisar lançar luz sobre o papel da Oposição de Esquerda como alternativa ao stalinismo.

REFERÊNCIAS

MARIE, Jean-Jacques. Apresentação de Havia alternativa ao stalinismo?. In: ROGÓVIN, Vadím Zakhárovich. Havia alternativa ao stalinismo?. São Paulo: Sundermann, 2023.

TROTSKY, Leon. A revolução traída. São Paulo: Sundermann, 2020.

Recebido em 27/02/2025

Aprovado em 03/09/2025

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