Descrição
Como e de que bueiros históricos e sociais emerge o fascismo? E como detê-lo? Ao fazer um balanço da situação francesa (logo após o malogro do breve gabinete dito de união nacional, chefiado pelo reformista moderado e conciliador Gaston Doumergue, em resposta à intentona direitista de 6 de fevereiro de 1934, com 17 mortos, muitas centenas de feridos, e manifestações sucessivas, nos dias seguintes, 7, 9 e 12 de fevereiro), Trótski interroga-se sobre a etiologia da ameaça fascista, em artigo aqui em tela. Encontra-se numa Europa já em plena metástase, recordemos: a Itália fora tomada pelo fascismo em 1922; a URSS pelo stalinismo desde 1923 (para se ir à célula inicial, ver a propósito o texto de Jean-Jacques Marie, “Termidor, bonapartismo e o destino da revolução russa”, neste número dos CMO), e a Alemanha, pelo nazismo, em 1934, para resumir.
Tendo já discutido intensamente as possibilidades e os perigos da situação espanhola numa série de textos escritos principalmente em 1930-31, durante seu exílio na ilha turca de Prinkipo (1929-33) e no curso dos quais
antevê, inclusive, a possibilidade de “aparecer um terreno propício para um fascismo autêntico” – ante uma
situação de “desengano e exasperação”, que compara “à da Itália após o outono de 1920” –, Trótski discute
então, naquela altura, as perspectivas da França (onde chegara em julho de 1933 e ficaria até junho de 1935).
Nesse país, o fascismo constituía também uma ameaça iminente. Assim, apesar dos sucessivos êxitos eleitorais
de blocos reformistas (liderados pelo pequeno-burguês Partido Radical), seus governos não logravam estabilidade política e tampouco debelar a ameaça fascista, como se comprovara pouco mais de um ano antes, nos motins de fevereiro contra a III República.
Com efeito, o desafio ou enigma de decifrar efetivamente as raízes sociais e políticas da peste fascista é
inextricável da urgência do programa para combatê-la, vale dizer, das medidas a serem tomadas para debelá-la
efetivamente. No caso do Brasil atual, a ultradireita, além de ocupar o governo por quatro anos e tramar sucessivas operações de golpe de Estado, ainda ocupou em motim aberto e violento – após a derrota eleitoral nas eleições presidenciais de outubro de 2022 – as sedes de todos os poderes da república, por várias horas e com transmissão pela TV… Quanto tempo temos, antes que seja demasiado tarde?
Após os eventos de 8 de janeiro de 2023, no Brasil, osCMO decidiram tomar diferentes casos de análises
históricas do perigo de uma escalada das forças de ultradireita, como a razão maior e o fio condutor dos textos deste número. Adotando então como paradigma a análise etiológica, feita por Trótski, em 1935, da ameaça fascista na França, bem como das hesitações correlatas de como reagir a ela, por parte do bloco reformista, escolhemos textos e documentos que, em sua maioria e de um modo ou de outro, tratam de situações sob algum aspecto análogas, ou seja, historicamente intermediárias, tal como aquela vivida pela França naquela altura, sob
um gabinete de centro-esquerda, liderado pelo Partido Radical. Situações, para ser preciso, de evolução aparentemente indefinida – em termos de correlação de forças e do predomínio de um bloco ou de outro –, mas que, de um modo ou de outro, após uma fase de incertezas, haveriam invariavelmente de desembocar no fascismo. Foi assim ao menos na Europa dos anos 1920 e 1930.
Nesses quadros marcados por incertezas, Trótski observa e alerta que, ante uma crise política e institucional,
muitas vezes cristalizam-se primeiro as respostas dos grupos dominantes, com instinto de autossobrevivência, prontidão e agudez repressiva; enquanto as forças reformistas, pelo contrário, paralisam-se, prisioneiras que
são de suas próprias ambiguidades e do receio de acirrar o conflito de classes e a organização independente do
movimento operário.
No texto em questão, de março de 1935, nota Trótski quanto aos sintomas das classes: “o descontentamento,
o nervosismo, a instabilidade, a irritabilidade da pequena burguesia constituem traços extremamente importantes de uma situação pré-revolucionária. Tanto quanto o doente ardendo em febre volta-se para o lado direito ou
para o lado esquerdo, igualmente a pequena burguesia febril pode se inclinar para a direita ou para a esquerda”. O remate da análise conclui que a inação, “a perda de tempo”, ante o estado mórbido, “abre uma perspectiva
para o fascismo”.
De modo análogo, a análise sobre o desfecho da crise desencadeada pela intentona de 6 de fevereiro de 1934,
que abriu espaço para o débil, malogrado e breve reformismo do governo Doumergue, conduz Trótski a uma
comparação crítica fulminante: “1) os capitalistas, desde antes de 1934, julgavam a situação revolucionária;
2) eles não ficaram esperando passivamente o desenvolvimento dos acontecimentos, a fim de recorrer a uma
defesa ‘legal’ no último minuto, mas eles tomaram, eles próprios, a iniciativa fazendo descer à rua as suas hordas. A grande burguesia deu aos operários uma inestimável lição de estratégia de classe”.
No Brasil, a escalada da ultradireita não é, evidentemente, provocada pela presença de uma situação pré-revolucionária. Ela é antes condicionada pela necessidade de ajustar o padrão de dominação burguês aos imperativos da administração da barbárie, numa sociedade em plena reversão neocolonial. Ainda que os imperativos do Capital, e ajustes correlatos, permaneçam vigentes, o ímpeto da ultradireita foi momentaneamente contido, mas sinais e sintomas estão à vista. Quem, em sã consciência, pode achar que a peste da ultradireita foi debelada? O estado infeccioso permanece, enquanto faltam, de outro lado, análises não apenas pontuais e detalhadas, mas com envergadura e totalização histórica.
Com a seleção e a tradução dos textos a seguir, assim como dos que se seguirão nos próximos números,
4 e 5, os CMO procuram fomentar o necessário debate histórico e clínico correspondente – enquanto é possível. Tenhamos ouvidos para o “aviso de incêndio”, como bem sintetizou e rematou Michael Löwy (colaborador convidado deste número) no último parágrafo de sua Introdução a Walter Benjamin: Aviso de Incêndio. Como insistia este último, ouçamos, enquanto há tempo, os sussurros dos mortos e vencidos, amontoados
aos milhões desde 1914: a peste fascista não tarda e quando acomete é implacável.
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